Por Juíza Maria Lúcia Karam - LEAP BRASIL
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Drogas têm sido usadas desde as origens da história da humanidade. Já a proibição, que tornou ilícitas algumas dessas substâncias psicoativas, nem sempre existiu, registrando-se, a nível global, somente a partir do século XX.
Valendo-se da ilegítima intromissão estatal na liberdade individual, da desastrada intervenção do sistema penal sobre o mercado produtor e distribuidor e até mesmo da declaração de uma nociva, insana e sanguinária guerra 1 (como nocivas, insanas e sanguinárias são todas as guerras), a política proibicionista vem destruindo vidas e espalhando violência, mortes, prisões, estigmas, doenças, sem
sequer obter qualquer resultado significativo em seu declarado objetivo de erradicar ou reduzir a circulação das selecionadas drogas tornadas ilícitas. Após cem anos da globalizada proibição com os 40 anos de “guerra às drogas”, o resultado visível é que as substâncias proibidas foram se tornando mais baratas,
mais potentes, mais facilmente acessíveis e mais diversificadas.
Guerra, mortes, prisões em nada afetam o fornecimento das drogas tornadas ilícitas. Patrões e empregados das empresas produtoras e distribuidoras, mortos ou presos, logo são substituídos por outros igualmente interessados em acumular capital ou necessitados de trabalho. Por maior que seja a repressão, as
oportunidades de trabalho e de acumulação de capital subsistirão enquanto estiverem presentes as circunstâncias sócio-econômicas favorecedoras da demanda que impulsiona o mercado. Onde houver demanda, sempre haverá oferta. A realidade não pode deixar de obedecer às leis da economia. As artificialmente criadas leis penais não têm o poder de revogar as naturais leis econômicas. A
proibição do desejo simplesmente não funciona.
O estrondoso e inevitável fracasso da política antidrogas, em seu declarado objetivo de erradicar as substâncias proibidas ou reduzir sua circulação, já deveria ser razão suficiente para o abandono da globalizada proibição. O fracasso, no entanto, nem é algo assim tão grave. É apenas um eloquente sinal da inutilidade da proibição. Muito mais graves são os imensos riscos, danos e sofrimentos causados
pela irracional opção proibicionista.
Drogas, como mencionado, encontram raízes nas próprias origens da história da humanidade; usadas por milhões de pessoas em todo o mundo, são um fenômeno massivo. Podem provocar estados alterados de consciência, o que
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A declaração de uma “guerra às drogas” foi feita, pela primeira vez, em 1971, pelo então presidente norteamericano Richard Nixon. facilita a criação de fantasias e mistérios sobre elas e as pessoas que as usam. Estão associadas ao prazer, elemento que propicia o lançamento de cruzadas moralizantes. Com a seleção de algumas dessas substâncias para serem proibidas no início do século XX, serviram elas, desde então, como um fácil pretexto para a apresentação de sua produção, comércio e consumo como uma “epidemia”, uma “praga”, um “flagelo” – o novo “mal universal”.
Apresentando a produção, o comércio e o consumo das selecionadas drogas tornadas ilícitas como algo extraordinariamente perigoso, incontrolável por meios regulares, a ser enfrentado por medidas mais rigorosas, emergenciais, por uma verdadeira guerra, a política proibicionista facilitou e facilita a expansão do poder punitivo, introduzindo, ou re-introduzindo sob nova roupagem, as ideias de “combate” e de “guerra” como parâmetro para o controle social exercido através do sistema penal. O parâmetro bélico transforma o estigma do “criminoso” no ainda mais excludente estigma do “inimigo”, exacerbando os danos e as dores
inerentes às intervenções do sistema penal.
A internacionalizada proibição se traduz nas vigentes convenções da Organização das Nações Unidas ONU)
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, cujas diretrizes orientam a formulação das leis internas sobre a matéria nos mais diversos Estados acionais. Os dispositivos criminalizadores, presentes nas convenções internacionais e nas leis nacionais, como a brasileira Lei 11343/2006, se caracterizam por uma sistemática violação de princípios garantidores inscritos nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas.
A criminalização se baseia na distinção arbitrariamente efetuada entre as selecionadas drogas tornadas ilícitas (como a maconha, a cocaína, ou a heroína) e as outras substâncias de similar natureza que permanecem lícitas (como o álcool, o tabaco, ou a cafeína). Uma arbitrária diferenciação entre as condutas de produtores, comerciantes e consumidores de umas e outras drogas é então introduzida – umas
constituindo crime e outras perfeitamente legais –, em clara violação ao princípio da isonomia, ao postulado da proporcionalidade e, assim, à própria cláusula do devido processo legal em seu aspecto substancial.
Não bastasse isso, indevidamente se criam crimes sem vítimas. A criminalização de qualquer conduta há de estar sempre referida a uma ofensa relevante a um bem jurídico alheio, ou à exposição deste a um perigo de lesão concreto, direto e imediato. Quando não envolve um risco concreto, direto e
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São três as convenções da ONU sobre a matéria, vigentes e complementares: a Convenção Única sobre entorpecentes de 1961, que revogou as convenções anteriores e foi revista através de um protocolo de 972; o Convênio sobre substâncias psicotrópicas de 1971; e a Convenção das Nações Unidas contra o tráfico ilícito de entorpecentes e substâncias psicotrópicas de 1988 (Convenção de Viena). Ainda ao tempo da Liga das Nações, já tinham sido estabelecidas convenções internacionais sobre drogas, a primeira delas a Convenção Internacional sobre o Ópio, adotada em Haia em 23 de janeiro de 1912. A imposição de criminalização só se concretiza, porém, com as convenções da ONU. imediato para terceiros – como a posse de drogas para uso pessoal –, ou quando o responsável pela conduta age de acordo com a vontade do titular do bem jurídico – como na venda de drogas para um adulto que quer comprá-las – a intervenção do sistema penal configura clara arbitrariedade.
Toda intervenção estatal supostamente dirigida à proteção de um direito contra a vontade do indivíduo que é seu titular se torna absolutamente inconciliável com a própria ideia de democracia, pois exclui a capacidade de escolha do indivíduo. O Estado democrático não pode substituir o indivíduo em decisões que
dizem respeito apenas a si mesmo. Ao indivíduo há de ser garantida a liberdade de decidir, mesmo se de sua decisão possa resultar uma perda ou um dano a si mesmo, mesmo se essa perda ou esse dano sejam irreparáveis ou definitivos.
A internacionalizada proibição, materializada nos dispositivos das convenções internacionais e leis internas que criminalizam a mera posse para uso pessoal das arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas que, equivalente à autolesão, não afeta concretamente nenhum direito de terceiros, e sua venda ou qualquer outra forma de fornecimento, que, tendo o consentimento do suposto ofendido, tampouco tem potencialidade para afetar concretamente qualquer bem jurídico, viola, pois, as normas garantidoras da liberdade individual e da intimidade, bem como as normas limitadoras do poder estatal (e assim igualmente
garantidoras de direitos individuais) que consagram a exigência de concreta ofensividade da conduta proibida, consequentemente violando a própria cláusula do devido processo legal em seu aspecto substancial.
Mas, as convenções internacionais e leis internas sobre drogas, como a brasileira Lei 11343/2006, ainda vão além, trazendo uma série de dispositivos que, além de reiterar a violação ao princípio da isonomia, à exigência de concreta ofensividade da conduta proibida e ao postulado da proporcionalidade, também
violam normas garantidoras da inadmissibilidade de dupla punição pelo mesmo fato; da presunção de inocência; do direito a não se autoincriminar; da ampla defesa; do devido processo legal.
Essas violações a normas garantidoras de direitos fundamentais, que estão na base da proibição e se aprofundam à medida que cresce o tom repressor, já demonstram que os maiores riscos e danos elacionados às drogas não são causados por elas mesmas. A proibição causa maiores riscos e danos, provocando a expansão do poder punitivo, desprezando as ideias que deram origem à proteção dos direitos fundamentais e assim minando as bases da democracia, o que acaba por perigosamente aproximar Estados democráticos de Estados totalitários.
As condenações por prática das criminalizadas condutas relacionadas à produção, ao comércio e ao consumo das selecionadas drogas tornadas ilícitas são a principal causa do superpovoamento das prisões em todo o mundo. Os EUA, ditos a “land of the free”, têm hoje a maior população carcerária do mundo. Em duas décadas, entre 1980 e 2000, o número de presos norte-americanos passou de cerca de 300.000 para mais de 2 milhões (em dezembro de 2010, eram 2.266.800). Após a declaração de “guerra às drogas”, no começo dos anos 1970, o número de pessoas encarceradas nos Estados Unidos por crimes relacionados a drogas aumentou em mais de 2.000%.
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O Brasil tem hoje, em números absolutos, a quarta maior população carcerária do mundo. Em dezembro de 2011, já eram mais de 500 mil presos (514.582), correspondendo a 269,79 presos por cem mil habitantes. Em 1995, essa proporção era de 92 por cem mil habitantes; em 2004, 183 por cem mil habitantes.
Acusados e condenados por “tráfico” que, em dezembro de 2005 (a partir de quando começaram a ser fornecidos dados relacionando o número de presos com as espécies de crimes), eram 9,1% do total dos presos brasileiros, em dezembro de 2011, chegavam a 26,68%. Entre as mulheres, essa proporção alcança 57,62%.
Entre dezembro de 1995 (pouco mais de 148 mil presos) e dezembro de 2011, isto é, em um período de dezesseis anos, a população carcerária brasileira aumentou quase 3,5 vezes. O aumento no número de presos por “tráfico” de drogas entre dezembro de 2005 (32.880 presos) e dezembro de 2011 (125.744 presos), isto é, em um período de seis anos, foi de quase 4 vezes.
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Na “guerra às drogas” norte-americana o alvo primordial é claro: os índices de prisões de afro-americanos são substancialmente mais altos do que os índices de prisões de brancos, em gritante desproporcionalidade com sua presença na população como um todo. Negros constituem 13,5% da população dos EUA, mas
37% dos que são detidos por violações a leis de drogas são negros; mais de 42% dos que estão em prisões federais e quase 60% dos que estão em prisões estaduais por violações a leis de drogas são negros. Quando se consideram apenas os homens afro-americanos, a taxa de encarceramento (731 presos por 100.000 habitantes) sobe para 4.749 presos por 100.000 habitantes. Na África do Sul, em 1993, à época
do apartheid, eram 815 por 100.000 habitantes os homens sul-africanos negros nas prisões.
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Michelle Alexander, em sua marcante obra “The New Jim Crow”, ressalta que, como nas épocas da escravidão e da segregação racial, o encarceramento
3 Crime in the United States: FBI Uniform Crime Reports 2005; Bureau of Justice Statistics, US Department of
Justice.
4 Dados do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça e do International Centre for Prison
Studies.
5 Bureau of Justice Statistics, US Department of Justice; Substance Abuse and Mental Health Services
Administration, National Household Survey on Drug Abuse: Summary Report 1998 (Rockville, MD: Substance
Abuse and Mental Health Services Administration, 1999); e Mauer, Marc. Americans Behind Bars: The
International Use of Incarceration, 1992-1993, The Sentencing Project, September 1994,
http://www.druglibrary.org/schaffer/other/sp/abb.htm.
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